Ninguém naquela cidade poderia esperar que aquilo acontecesse. O choque foi tão grande que alterou o comportamento natural de um lugar pequeno como aquele, diante de acontecimentos semelhantes aos que tinham acabado de ocorrer. Em vez da história da jovem Marcela ser comentada em praticamente todas as casas e conversas de rua, o que aconteceu, na verdade, foi o contrário. Quase ninguém falava, quase ninguém tinha coragem de falar, pareciam atônitos, contristados e até envergonhados pelo que tinham acabado de ouvir no velório da moça de dezenove anos, que era conhecida por todos na cidade, tanto por sua beleza quanto por sua notória fiel vida religiosa e por sua bem-sucedida vida profissional de universitária de letras, que já estagiava lecionando literatura em cidades vizinhas.
Três dias antes disso, na manhã do dia em que morreu, por conta de complicações infecciosas, Marcela pediu uma caneta e um caderno, que lhe foram dados por uma das enfermeiras que estavam de plantão no CTI naquela hora. Essa mesma carta foi recolhida por essa enfermeira no momento em que os procedimentos de ressuscitação começaram, pouco menos de uma hora depois que Marcela tinha terminado de escrever. A carta foi entregue ao seu irmão, quando o mesmo chorava, inconsolável, ao lado do pai, após receberem a notícia do falecimento da jovem.
Três dias depois, o texto foi lido em público, no velório da moça, pelo pai dela. O texto está transcrito abaixo, da forma que o irmão, que conhecia a letra e a forma de escrever de Marcela mais do que ninguém, a transcreveu das folhas de caderno amassadas para um arquivo que pôde ser impresso e levado para a igreja:
“Me sinto cada vez mais fraca e escrevo cada uma dessas palavras com muita dificuldade, tanto pela dor nas mãos quanto pelo esforço que faço agora para enxergar apenas com o olho esquerdo. Por isso, peço desculpas por minha letra estar horrível, no entanto, creio que também esteja clara o suficiente para ser compreendida.
Agora eu estou em paz. Estou tranquila. Sei que é muito provável que não sobreviva para sair desse hospital, hoje me sinto muito fraca e bem pior do que ontem. Mas estou pronta para ir, pelo menos agora estou. Sei para onde vou e para falar a verdade, acho até que quero ir, se pudesse escolher, não queria ficar.
No mês passado, quando todo mundo descobriu que eu não estava fazendo estágio na escola da cidade vizinha quase todos os fins de semana, mas que, na realidade, estava indo até a capital dormir na casa de amigas e aproveitar as boates, os homens, o sexo, a bebida e as drogas, o que mais doeu foi a vergonha. Acho que não consigo expressar em palavras a vergonha que senti. Vergonha do meu pai e do meu irmão, que amo tanto e que sempre me trataram como a princesa da casa. Vergonha das pessoas na cidade, pois conheço todos e sei que todos me conhecem. Vergonha dos meus amigos, que achavam que eu era uma pessoa, quando, na verdade, era outra, que eles não conheciam. Mas nada se compara a vergonha que eu senti dos irmãos da igreja e principalmente de Deus. Acho que não conseguiria explicar o tamanho dessa vergonha, mesmo se fizesse dessa pequena carta um livro.
Contudo, nunca, nem em meus piores pesadelos de vergonha, eu conseguiria imaginar que seria tratada de forma tão cruel justamente pelas pessoas de quem eu fui ensinada, desde criança, nas classes de escola dominical, a esperar mais ajuda, perdão e compreensão.
E antes que alguém possa pensar que estou tentando justificar meus atos e erros, digo bem claramente que sei da gravidade do que fiz, entendo que pecar como pequei, mesmo já conhecendo o Evangelho e a Graça de Deus, é como desprezar a cruz de Cristo. Também não esperava que as pessoas achassem meu comportamento normal ou mesmo que não me repreendessem, pois eu realmente merecia isso. Merecia que o irmão Sérgio me afastasse da escala do piano, no grupo de louvor, merecia que o pastor me afastasse das atividades ministeriais e merecia arcar com as consequências do meu pecado, pelo menos até o momento em que me arrependesse e pudesse, aos poucos, voltar a trabalhar no serviço do Senhor, sem mentiras e sem mais nada a esconder.
Em suma, eu não esperava que me passassem a mão na cabeça na igreja, mas eu esperava mãos estendidas, esperava ajuda, ou que, ao menos, não pisassem em mim, piorando ainda mais o estado em que estava, por ter cometido tamanhos erros em minha vida. Mas me pisaram, me humilharam, me xingaram e nem mesmo olhavam para mim, quando passavam.
Acho importante dizer aqui que mesmo com toda a vergonha, da qual falei mais acima, resolvi ir até a igreja, até porque ainda precisava encontrar o verdadeiro arrependimento, visto que o que sentia até ali era apenas remorso e vergonha pelo que tinha feito. Estava desesperada com o que tinha feito com minha vida, precisava de ajuda e precisava rápido. Contudo, só o que encontrei foi desprezo e mãos que, em vez de estarem estendidas para me ajudar, como eu inocentemente esperava, me apontavam, acusavam e insultavam, o que me deixou ainda mais machucada e desequilibrada psicologicamente do que já estava. Eu não queria que aceitassem o pecado, pois sei que isso é um outro extremo de erro. Eu só queria ter um pouquinho do perdão e da ajuda que se dá aos que estão fora da igreja.
Eu cresci ouvindo que os piores pecadores devem vir até Cristo, ou até a igreja, da forma que estão. Ouvi e vi diversos casos em que prostitutas, adúlteros, viciados, assassinos e até estupradores foram atraídos pela pregação de que Jesus perdoa e de que eles poderiam mudar suas vidas, com total apoio e compreensão da igreja, mesmo quando fraquejassem e fosse difícil se manter longe do pecado. Eu acredito nisso, acredito que é verdadeira a pregação e até por ter visto algumas provas vivas, acredito que é possível a mudança de vida, mesmo no caso dos mais graves erros que o ser humano pode cometer.
E era só um pouquinho disso que eu queria. Acho que se tivesse apenas dez por cento do que é dado aos de fora, eu não estaria aqui agora. Repito que não queria permanecer no pecado e ser aceita e acobertada, não queria que deixassem de me falar sobre a gravidade do que fiz; eu só queria que fizessem isso, me dando, logo depois, a mesma escolha de perdão e mudança de vida que é dada aos que não conhecem o Evangelho. Eu sei que o que fiz foi terrível, principalmente por conhecer a Graça de Deus, mas eu também lembro que sempre aprendi que não há pecado que Jesus não possa perdoar e que não há vida que Ele não possa transformar.
Por que a Graça para mim não teria mais poder de salvar e transformar?
Por que eu não podia ser tratada como um assassino ou estuprador que chega a igreja e ser acompanhada de perto, mesmo que com atenção redobrada, enquanto caminhasse com Cristo para me arrepender e ter minha vida mudada por Ele?
Por que as piores humilhações tinham que vir justamente de onde eu mais esperava ajuda?
Por que eu não pude ter uma chance de mostrar que queria me arrepender, que queria ajuda, que queria Deus?
Por que ninguém se aproximou de mim enquanto chorava, depois de todas as repreensões, suspensões e exortações (que já disse que merecia)?
Por que ninguém me ofereceu ajuda, em vez de passar longe, falando coisas pelas minhas costas (que pude ouvir), que eram piores do que as coisas que eu tinha ouvido diretamente da boca de muitos, que já tinham sido terríveis?
Por que ninguém podia me ajudar a encontrar em Deus a ajuda para que meu remorso e vergonha fossem transformados em verdadeiro arrependimento, como só meu pai conseguiu fazer, depois que chegou de viagem e soube de tudo, quando eu já estava aqui nessa cama de hospital?
Por que ninguém podia sequer tentar me impedir de voltar para casa e continuar com meu plano de usar as garrafas de álcool que tinha deixado no quarto, para atear fogo no meu próprio corpo, antes que meu pai voltasse de viagem?
Em relação a mim, eu sei a resposta para todas essas perguntas, pois sei que esse foi um meio da Graça de Deus para mim, pois por meio do que eu fiz, tentando me matar, ou seja, cometendo um pecado terrivelmente mais grave do que todos os outros que tinha cometido por dois anos da minha vida dupla, Ele me alcançou e gerou em mim o verdadeiro arrependimento. Sua Graça me arrebatou no primeiro dia em que cheguei aqui, logo depois de conversar com meu pai e de saber que ele e meu irmão, que me perdoaram e me ajudaram instantaneamente, desde então, fazem vigília aqui na porta do CTI, mesmo sabendo que só podem me visitar uma vez por dia, durante uma hora. Meu pai pregou o Evangelho para mim e meu irmão me lembrou que no dia em que a mamãe se foi, ele tinha prometido a ela cuidar de mim para sempre. Então, para mim, os dois foram tudo o que eu precisava, foram os instrumentos de Deus para que hoje eu seja remida pelo sangue de Jesus.
Mas e a resposta para as outras pessoas que estão na igreja e pecam? O que se responde a todos esses e ainda outros “porquês”, que não enumerei aqui? E se o meio da Graça na minha vida não fosse o que ocorreu e eu tivesse morrido antes do meu irmão me encontrar, apagar o fogo e me trazer para o hospital, dando-me tempo para me arrepender, antes de morrer?
Por isso eu escrevo essa carta. Ela não é endereçada a ninguém, pois graças a Deus tive tempo para falar tudo o que queria e precisava para meu irmão e meu pai, mas eu gostaria que ela servisse apenas de alerta para que nós, cristãos, refletíssemos e oferecêssemos uma mão de ajuda para os nossos irmãos que desejam, de verdade, terem suas vidas transformadas pelo Senhor, mesmo depois dos piores pecados.
Hoje eu sou apenas mais uma pecadora salva pela Graça de Deus, tendo que parar de escrever de tanta dor nas queimaduras das mãos e no rosto, por conta das lágrimas que caem; mas sou alguém que está em paz, morrendo em paz, porque aquele que está em Cristo nunca verá a morte.
Finalizando, gostaria que esse meu texto servisse para que reflitamos sobre nosso conceito de perdão, visto que o perdão seletivo é maligno, não é o perdão ensinado por Cristo, no Evangelho. Ainda que o perdão que apregoamos para os de fora seja bom e legítimo, quando oferecemos um perdão menos eficaz e amoroso ou mesmo quando negamos perdão aos que estão dentro, e que erraram e se arrependeram, acredito que oferecemos ao diabo uma das coisas que mais o deliciam, que é a distorção das verdades do Senhor, algo que, aliás, a serpente fez desde o início.
Por favor, ajudem os irmãos que precisarem e quiserem ajuda. Pelo amor que sentem a Deus e a Cristo, ajudem e não deixem que se corra o risco de alguém fazer algo parecido com o que fiz, sem ter a benção de ainda ter tempo de se reconciliar com Deus, como eu tive.
No mais, louvado seja Jesus, que me perdoou e me alcançou, mesmo que eu não merecesse! Louvado seja Ele, por meio de quem nenhuma condenação tenho.
Pai, mano, amo vocês e vou esperá-los lá em cima.
Marcela”
Ao terminar de ler a carta, diante do caixão da filha, o pai de Marcela, que teve que pausar a leitura diversas vezes, apenas desceu do altar e, abraçando o filho, saiu da igreja, sendo seguido por todos os demais presentes, que saíam, aos poucos, calados, com lágrimas nos olhos e com uma mensagem do céu no coração.
Ficaram lá dentro apenas três rapazes e duas moças, que tinham suado frio durante cada palavra lida pelo pai de Marcela, pois os cinco viviam a mesma vida dupla que ela, inclusive tendo estado juntos em quase todas as boates e baratos de fim de semana. Permaneceram ali, os cinco jovens (entre os quais o próprio líder do louvor, que a tinha afastado do piano), sozinhos com o corpo e o caixão da amiga, chorando, entreolhando-se e buscando, de alguma forma, reconciliarem-se com Deus, antes que precisassem da ajuda que Marcela tinha pedido que fosse dada aos caídos da fé.
– E eu era uma dessas moças, meu filho. – Disse Maria Clara, segurando as mãos do jovem com a mão direita e o velho papel com a carta que tinha acabado de ler com a mão esquerda. Seu filho tinha acabado de pedir que ela expulsasse a irmã de dezesseis anos de casa, por ter descoberto que ela tinha engravidado. – Nunca deixei de me entristecer ao lembrar que nós cinco a tratamos da mesma forma que os outros, mesmo sabendo que estávamos com ela nas mentiras e pecados. Naquele dia, ficamos mortos de vergonha ao descobrir que em vez de nos denunciar, como poderia ter feito, ela tinha, de certa forma, pedido que nos ajudassem, pois era disso que iríamos precisar se essa carta não tivesse sido usada por Deus para mudar completamente nossas vidas.
– Portanto, meu amor – Continuou ela com lágrimas nos olhos. – Me ajude a ajudar sua irmã, pois eu já sei há duas semanas que ela está grávida, mas sei também que está extremamente arrependida e apavorada com o que você, seu pai e os irmãos da igreja vão pensar.
– Segure – Disse ela, entregando a velha carta nas mãos dele. – Leia de novo e se sua irmã realmente quiser ajuda, por favor, meu filho, vamos ajudá-la.
Mas ele nem precisou ler de novo. No mesmo instante, saiu da sala envergonhado e com lágrimas nos olhos, direto para o quarto da irmã, que quase morreu de susto ao vê-lo entrar daquele jeito, pensando que começaria o pesadelo da acusação. Contudo, ela também se derramou em lágrimas quando ele não a deixou falar nada e a abraçou com força, chorando copiosamente, dizendo sem parar que a perdoava e que o perdão de Deus não é um perdão maligno.
Por muito tempo só o abraço emocionado continuou, com os dois sentados na cama, e nada mais se falou no quarto, até porque não era preciso. Ali era Deus quem estava no controle e que, depois de tanto tempo, estava usando novamente a carta que tinha inspirado Marcela a escrever, antes de levá-la para estar com Ele.
Pr. Raphael Melo
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P.S.2: Esse é um trabalho de ficção que visa demonstrar a forma errada com a qual, muitas vezes, tratamos os nossos irmãos feridos e caídos, que realmente desejam ajuda.
1 Comentário. Deixe novo
Nossa! como somos tolos, eu mudei de igreja, por vê esse tipo de acontecimento com pecadores arrependidos, falei com o pastor que na quela igreja, um caido seria pissado até a morte, ele um jovem pastor, apenas olhou para mim e sorriu, eu já tinha visto essa mesma igreja lançar uma jovem, no mundo só por ter se inclinado para o homossexualismo, e não queria que eles lançase o meu propio filho, por quem eu estou disposta a morrer todos os dias, e trazer para ele a vida de Cristo em mim.